Entrevista - Aspectos da Religiosidade Chinesa


Esta entrevista, a seguir, foi concedida para um jornal da Universidade Católica de Brasília, em 2008. Observem que alguns temas se repetem, e que a dúvida constante sobre as "religiosidades" chinesas faz com que persevere um ponto de vista estranho e confuso sobre o pensamento chinês antigo.

- Como as religiões influenciaram na formação do pensamento e da cultura do povo chinês?
Já de cara, deveríamos inverter a pergunta: o que a China fez com aquilo que chamamos "religião"? Sendo um conceito ocidental, talvez ele não seja totalmente aplicável à civilização chinesa. O Sinólogo Vincent Goossaert identificou muito bem o problema: uma religião precisa ter, segundo os nossos parâmetros, um clero, um credo e uma liturgia. Ora, talvez o taoísmo apresente um clero, mas suas liturgias variam bastante. Os budistas podem ter um clero, mas seus credos são totalmente diferentes; os confucionistas defendem, inclusive, a liberdade de credo, não tem clero mas talvez tenham uma "liturgia" ( a idéia de ritual, li). Dito isso, pois, talvez possamos dizer que a China tem apenas um "pensamento religioso", que atinge diretamente a população em geral, mas que ao mesmo tempo se encontra diretamente atrelado, analisado e medido pelo critério da "Filosofia" chinesa.

- O taoísmo e o Confucionismo são duas correntes filosóficas ou podem ser consideradas religiões? Por quê?
Como disse antes, o taoísmo pode até ser considerado uma religião, se analisarmos as características gerais de cada seita. Mas para isso, temos que enquadrá-los no conceito de religião, o que torna uma análise possível do taoísmo já direcionada para o aspecto teológico. O taoísmo antigo, porém, era muito mais "filosófico" do que propriamente religioso, e tal mudança só ocorrerá em torno do século 4-5 d.C. Já o confucionismo, definitivamente, não pode ser dito uma religião. Um confucionista pode ter o credo que quiser, e suas obrigações são mais morais e sociais do que vinculadas a um tipo de pensamento metafísico. O confucionismo naturalmente inspira a tolerância religiosa, mas não advoga uma religião em especial.

- Quais os principais princípios que Confúcio pregava?
O centro do pensamento confucionista é a idéia de humanismo (Ren). Uma sociedade equilibrada só será encontrada no dia em que os seres humanos se entenderem como tal, respeitando-se mutuamente. Para isso, Confúcio defendia a idéia de que o meio apropriado para realizar uma transformação social era a educação (Xue). Somente a educação poderia inculcar no ser humano uma série de valores que podemos chamar de Li - incorretamente traduzidos como "rituais", talvez o mais adequado seria chamá-los de "modos de relacionamento e comportamento" - cujo objetivo era construir um ser humano coerente, consciente e crítico.

- O que são divindades e deidades?
Ao meu ver, as duas palavras são sinônimas. As divindades constituem o corpo dos deuses que compõe o panteão do antigo politeísmo folclórico chinês. Alguns são originais (criados junto co mundo) e outros surgem ao longo da história, através de feitos miraculosos que os transformam em deuses intercessores no mundo.

- Quais as grandes contribuições do Confucionismo e do taoísmo? E hoje o que mudou?
Ambas as escolas são o alicerce do modo chinês de ver o mundo. Não acredito sinceramente na tentativa de alguém tentar entender a China sem estudar profundamente seu passado. Estudando o passado, se entende tudo que acontece agora - mas se focando apenas o contemporâneo, a mente chinesa será sempre incompreensível para o ocidental. O taoísmo sobrevive ainda nas crenças populares, mas encontra-se bastante diminuído como religião. Creio que no futuro ele voltará a ter mais força, mas agora é o momento do confucionismo. Tido como primeiro sistema filosófico da China, e base do pensamento social, o confucionismo está sendo retomado com toda força. Esta é a segunda fase de um "Neconfucionismo" surgindo na história chinesa.

-Na abertura dos jogos olímpicos em Pequim o confucionismo foi apresentado como um dos temas de destaque. O Senhor assistiu a abertura dos Jogos Olímpicos de Pequim? Se sim, como o Senhor vê a relação de utilização do tema de tradição chinesa evidenciado em um evento dessa grandeza? Se não, por que num evento dessa grandeza um tema tão particular dessa cultura mereceria tamanho destaque?
Só vi pedaços, foi um espetáculo maravilhoso que faz o mundo pensar no poder de organização que os chineses têm. Quanto ao confucionismo surgir na cerimônia, o objetivo é claro: mostrar ao mundo a importância desta corrente filosófica. O século 21 verá o confucionismo ressurgir como a grande doutrina de pensar chinesa. E o atual regime chinês, afeito a idéia de ordem, educação e disciplina, aceitará com certeza esta ressurgimento saudável.

- O budismo de fato tem origem hinduísta? Pode-se afirmar que o budismo é uma religião ou uma filosofia?
Com certeza. O budismo nasce no seio do hinduísmo, como uma negação a idéia religiosa que justificava o sistema de castas. Se ele é uma religião, aí voltamos ao problema do conceito. Afinal, os budistas se dividem em correntes que podem ou não acreditar em Deus ou Deuses! Isso quebra qualquer tipo de possibilidade de classificá-lo como uma religião. Preferia então classificá-lo como uma filosofia ou doutrina.

- A China possui alguma religião oficial ou qual a distribuição das religiões entre o povo chinês?
Não, os chineses não têm uma religião oficial. Os que se consideram "religiosos" são, na maioria, budistas. Existem ainda taoístas, islâmicos e cristãos, mas em menor proporção. E, no geral, todos os que praticam algum tipo de religião acreditam no politeísmo folclórico popular.

- Qual a importância do budismo para o povo chinês?
O Budismo, como foi dito, muda o panorama intelectual e filosófico da China. Atraente, por pregar a possibilidade de todos alcançarem o nirvana e por defender uma idéia de reencarnação que alivia o indivíduo da possibilidade de só ter uma vida, o budismo transformou-se numa opção interessante para a sociedade chinesa, e conquistou um grande número de adeptos, transformando o país no maior centro budista do mundo.

- Qual a maior dificuldade dos ocidentais para interpretar a visão sobre o transcendente que os orientais (em particular os chineses) possuem? Somos incapazes de compreendê-los? Explique.
Mesmo a idéia de transcendente não se aplica também aos chineses no geral. O pensamento chinês é, em sua origem, imanente - tudo está aqui, em potência, esperando ser desperto. A transcendência só existe no budismo, que acredita numa libertação completa da matéria. Esta dicotomia, pois, é essencialmente ocidental e indiana - não chinesa.

- O Senhor considera que o budismo é uma "religião" aceita no Brasil e no Ocidente como um todo? Há uma parcela considerável de brasileiros ou ocidentais são adeptos?
Das religiões não-monoteístas, o budismo é a que conquistou mais adeptos no ocidente, por suas perspectivas filosóficas interessantes. Não existem grandes problemas em sua aceitação, conquanto que o indivíduo aceite basicamente o problema da reencarnação. Creio que um diálogo mais aprofundando com o budismo pode se dar com os kardecistas, cujas crenças se aproximam em alguns pontos.

-Como os orientais vêem as religiões monoteístas cristãs?
As reações são diversas, e correspondem a cada sociedade. Indianos e chineses vêem de modo bem diferente a questão religiosa. No caso da China, ao qual me atenho, posso dizer que os chineses são, no geral, tolerantes com qualquer crença, desde que ela não busque desafiar a lei estabelecida, que é laica e atinge a todos. Um missionário, portanto, que advogue a proibição da camisinha, dos anticoncepcionais e da prática do sexo num país de super população, ameaçado pela fome e onde o sexo nunca foi pecado encontrará, realmente, problemas para afirmar seus pontos de vista. As opções, como os chineses sabem, sempre serão pessoais. Mas é necessário, numa civilização tão grande como essa, que muitas vezes o ideal dê lugar ao pragmático.

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