Ao sistematizar suas teorias sobre a História, Sima Qian (sécs. -1-2), o grande historiador chinês, definiu como dois pontos fundamentais para compreensão dos acontecimentos que:
1) A história é cíclica, ou seja, feita por ciclos de desagregação (Yin) e agregação (Yang) que se alternam continuamente;
2) Ela é cíclica, mas numa espiral ascendente, que determina que há uma evolução nas concepções tecnológicas, morais e sociais. Isso significa que há um princípio que rege a evolução da história, que é a superação dos desafios de uma civilização; tais problemas, contudo, são os mesmo de sempre no mundo da mutação – a fome, a guerra, a crise econômica ou moral, as invasões, etc.
Buscar leis absolutas para compreender os fenômenos históricos parece ser uma tentativa já superada de cientificizar a História; por outro lado, tanto as ciências são feitas de leis que se superam gradualmente quanto a História carece de um modelo teórico e metodológico para se auto-justificar, o que lhe remete a esta constante necessidade de ter um sistema, método ou técnicas científicas que a ajudem a comprovar suas teses e que lhe determine os rumos.
Este artigo, pois, é um exercício de utilização das teorias de Sima Qian aplicadas à estrutura de longa duração da história brasileira, buscando dar um sentido as transformações pelas quais nossa sociedade passou e tentando imaginar, num futuro próximo, o que há de ser de nossa cultura e país.
Os ciclos históricos
Embora o marxismo tenha feito uma tentativa superficial de explicar a história brasileira em termos de ciclos econômicos (o ciclo da cana, do ouro, do café, etc.), a tentativa, embora um tanto equivocada, não era absolutamente incorreta. O fundamento de sua afirmativa (a economia) é que constituía sua grande limitação; a ausência de uma busca de princípio (Li), aplicada à constituição da cultura brasileira, seria a coisa mais adequada a fazer– autores como Sérgio Buarque de Hollanda chegaram a ensejar isso, mas sem abordar – é claro – a problemática yin-yang como motor do dinamismo histórico. Isso limitou deveras as possibilidades de contemplar o fenômeno da civilização brasileira como um conjunto ritmado (yun) de movimentos.
Em escala macro-cósmica, a história brasileira é, portanto, organizada em ciclos históricos maiores e um tanto difusos, relativos aos processos de expansão e limitação das ações sociais e culturais. No início da colonização, o primeiro movimento se organiza em torno de uma exploração livre, aberta e empreendedora do espaço, dando margem às liberdades de todos os tipos: econômicas, de hábitos, de conduta, etc. O movimento expansivo, yang, é o determinante fundamental dos conflitos revolucionários, sociais, inter-étnicos, mas também dos investimentos ousados, da descoberta, do risco. O Brasil encontrava-se, portanto, como uma criatura nova, cheia de energia, cujo desenvolvimento natural se dava sem regras claras, e os objetivos ainda eram confusos. O excesso de yang desperta a desagregação, a dissipação das energias, que provocam o surgimento e a ascensão de yin, contrabalançando gradualmente este fenômeno de expansão livre.
A instauração de uma ordem política dura veio com 1ª repressão institucional seriamente organizada e feita no país, na época da inconfidência mineira, com o fortalecimento das instituições coloniais e o exercício de uma vigilância mais eficaz sobre a sociedade. O totalitarismo destas medidas visava conter a desagregação da sociedade causada pela disseminação de yin. Yin marca os períodos em que a ordem natural cede à desordem natural, ao cansaço das forças que aglutinam a sociedade. O paradoxo, portanto, desta situação é explicada novamente pelo diagrama Taiji; em situações de fluir desagregado, governados por Yin, é necessário (e surge, pela propensão natural da oposição complementar) a força yang, exercida de modo rápido, porém fulminante e efêmero, dado que resulta de um excesso (ou poderíamos chamar de um “choque de ordem”, que elimina o que é desagregador e assim, instaura uma nova ordem, porém com os ajustes necessários para compensar as falhas anteriores).
O excesso desta fase yin é contrabalançado na época da chegada da família real ao país, no início do século 19, quando uma série de medidas provocaram uma abertura cultural, intelectual, econômica e social. É o tempo em que yang toma o corpo da sociedade em movimentos expansivos, e o governo se restringe, adotando uma postura de recesso, de contração.
Isso duraria até a proclamação da independência, com a ascensão do império e as conseqüentes revoltas na época da regência. Yang atingiu o seu máximo, determinando uma mudança das estruturas políticas; a espiral de Sima Qian mostra, aqui, os motores de uma revolta de caráter conflituoso, causada pelos mesmos fatores da mutação – o desejo de expansão, de ascensão, de liberdade, de livre-empreendimento – aos quais se busca, no entanto, uma nova solução. O projeto atlântico de Dom Pedro I tentara conciliar a antiga dinastia com os novos pretendentes do poder, os brasileiros, mas isso tornou-se impossível, e os conflitos acentuaram-se sobremaneira. Somente a subida de Pedro II acalmaria a sucessão, e daria estabilidade à sociedade e encerraria esta fase yin de nossa história.
A figura controversa e autocrática do imperador deu vazão a uma saraivada de críticas ao seu governo por parte dos intelectuais e historiadores; no geral, porém, o Brasil retomou a idéia de ordem e expansão yang, o que se refletiu nos avanços de sua economia e na relativa calmaria com que se conduziu a situação social. Com a exceção terrível da guerra do Paraguai, provavelmente inevitável para nações cujo o yang (expansivo) estava destinado a chocar-se, as questões fundamentais do país foram tratadas com admirável competência, e o país encontrava-se relativamente bem organizado quando do golpe militar que instaurou a República.
O ciclo yang do império havia se encerrado; afinal no ápice de sua expansão, yang desperta yin, a mudança, a desagregação, e o interesse de alguns grupos sociais determinou que a continuidade do país fosse feita em novas bases, dentro de um novo sistema político. O princípio (Li) sempre move a história na evolução da espiral, sem retrocessos, e as respostas para este novo tempo foram encontradas num sistema político alternativo, e entendido como moderno.
A passagem não se deu sem conflitos, como bem sabemos – as épocas de transição são marcadas por eles - mas a própria República encaminhou-se para uma flexibilização, manifesta pela adoção da via eleitoral. Obviamente este mecanismo tinha suas limitações (se o compararmos às eleições de hoje) mas na época, era um relativo avanço para a estrutura social e política de nossa civilização. Somente o cansaço deste modelo podia despertar uma nova época yin, que se manifestou no golpe empreendido por Getúlio Vargas. Anos de ditadura e opressão tornam esta uma época yin, com direito a uma revolta de escala nacional em 32, contrabalançada por medidas yang, que buscaram unir à força e regular o processo da vida. O encerramento da segunda Guerra mostra as fissuras deste modelo, que pareceu útil somente em tempos de exceção.
É assim que, novamente, o país reencontra-se com a democracia, embora de forma vigiada. Alternam-se se presidentes – tanto Getúlio, que termina por se suicidar, quanto Juscelino, conclamado com um dos melhores presidentes da história -, sempre sobre os olhares vigilantes das forças que temiam esta expansão, e que pretendiam, a todo custo, impedir uma nova desagregação da sociedade, manifesta no perigo paranóico do comunismo.
Por conta disso, em 64, instaura-se uma nova ordem yin, introspectiva, repressiva, e no entanto com apoio da maior parte da população. Tal como fez Qin, o governo atua por leis duras, que visam a contenção; a contenção, porém, acumula e prepara o despertar de yang, e as décadas de supressão são superadas paulatinamente por um movimento democrático. Observemos, porém, a atuação do princípio de evolução proposto por Sima Qian; esta transição não se deu, agora, por meio de revoltas, mas foi muito mais calma e pacífica.
Na atualidade, o desenrolar destes movimentos indicam que o movimento yang parece estar novamente se esgotando. Tivemos o primeiro governo de oposição (esquerda) eleito na história, e que cumpriu seus mandatos inteiramente; no entanto, e apesar da aprovação geral da população, há um clamor significativo (e preocupante) para que as forças militares voltem a ocupar as ruas, e combatam a violência, considerada a principal calamidade dos tempos contemporâneos. Torna-se uma possibilidade significativa que o atual governante não consiga garantir a ascensão de sua substituta, pois apesar da satisfação comum, parece haver um senso de que é necessário um discurso forte, unificador, tal como o dos períodos yin. É bem provável que o sistema político mantenha-se o mesmo, mas o futuro presidente será, se a teoria de Sima estiver correta, alguém de “direita”, com um discurso forte e reformador para tempos de desagregação. Neste caso, nossa situação é verossimilhante, inclusive, à do Chile. Será que esta fase yang acabou?
Indícios da mutação
Quais seriam os signos que pressagiariam o esgotamento desta fase? Neste caso, tomo o Estado do Rio de Janeiro – e mais especificamente a capital – como um microcosmo das mudanças que se ensejam. Em minha concepção, o Rio de Janeiro é o laboratório de experiências do Brasil; após séculos sendo a capital do país, e promovendo uma mistura completa de culturas provenientes das mais diversas regiões, o exercício do poder nesta cidade-estado mostra os testes, os modelos e as tendências gerais que se estabelecerão num futuro próximo no restante do Brasil. O Rio foi, por exemplo, um dos primeiros estados a ter governadores de oposição (“esquerda”), que lançaram o mesmo em reformas educacionais equivocadas, e a um descalabro de violência, manifesto pela infestação de criminosos nos mais diversos bairros e comunidades. Os discursos paternalistas tentaram diluir e aplacar a imagem catastrófica que se criou sobre o estado e sobre a capital, mas sem sucesso. Somente dois prefeitos, cujas administrações controversas instauraram um governo duro, porém, "organizado", conseguiram ser reeleitos consecutivamente. O atual governo do Rio – estado e capital – tenta instaurar uma nova ordem política, aparentemente dura, calcada no uso da força, que parece ser necessária aos olhos de uma parte da população. Do mesmo modo, a reforma da educação encaminha-se para um endurecimento das regras de formação – foi o Rio, afinal, que inventou a desgraça da aprovação automática, causa principal de uma geração inteira de ignorantes funcionais, e está sendo o primeiro a aboli-la novamente – conquanto outros estados da união não parecem estar conscientes sobre estes processos, e se encaminham para a vivência da mesma calamidade. A leniência é a danação da pedagogia; a condescendência, o favor do crime. Esta experiência nefasta mostrou ao Rio o caminho inexorável desta alternância; São Paulo parece mostrar os mesmos indícios; servirá esta experiência de alicerce para as mudanças que se seguirão?
Uma conclusão
Que se entenda, a evolução continua. As experiências yang e yin alternam-se, e promovem os ajustes necessários para a continuidade da sociedade. Estas alternâncias são indispensáveis para quebrar o imobilismo, e para renovar as estruturas. A desordem (wenji, a crise, que significa tanto “ocasião DE problema” quanto “ocasião NO problema”) existe para recriar a idéia de ordem. Sociedades que não conseguiram superar este desafio de alternância, e se agarraram ao passado como uma salvação alienada, extinguiram-se. O passado é um exemplo, como dizia Sima Qian, mas não se repete; os modelos dos ciclos servem para a explicação das coisas, mas a inspiração deve vir do desejo de superar estes ciclos. A história é, assim, a base sobre a qual se assenta a investigação sobre as possibilidades de mudança; o mundo irá mudar, de qualquer modo, mas que sejamos guias conscientes desta ação histórica.
O que há de se manifestar, pois, que apareça; se ele é inevitável, que estejamos preparados para o futuro, de modo esclarecido e cônscio. Meu receio particular, contudo, é que anos de educação deficiente e assistencialismo ingênuo promoveram uma incapacidade quase total, em parte significativa do povo, de lidar com a realidade. Há o Céu, pois, de nos punir com calamidades? Haverá a transição para uma nova ordem de modo tranqüilo? Ou ainda serão necessários mais anos de esgotamento e violência para a deflagração de um novo período?
Tais incógnitas são, justamente, o ponto de mutação; e a proposta de Sima Qian é sua lanterna.
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