A fracassada sinologia brasileira


Os estudos acadêmicos constituem a base da preparação dos homens de talento; os estudos acadêmicos são a base do governo e a manutenção de todos os assuntos de Estado; e os homens de talento, por últimos, a base para criar as condições necessárias para a subsistência do povo. Sem os estudos acadêmicos, não haverão homens de talento; sem estes, não se poderá governar o Estado e manejar seus assuntos; sem poder fazê-lo assim, não se poderá pôr em boa ordem o país, nem alcançar a paz no mundo, nem criar as condições necessárias para a subsistência do povo. (Yanyuan, 1633-1704)

Infelizmente, a Academia brasileira prefere autores mortos e temas já batidos, com os quais dispensa as polêmicas e reafirma linhas de pesquisa já caqueticamente estabelecidas. O fascínio eurocêntrico não diminuiu de forma alguma, e mesmo pensadores estranhos - com passados tenebrosos ligados ao pior do nazismo ou do estalinismo - continuam a ser debatidos na Universidade, sob a justificativa de que “produziram coisas boas que devem ser analisadas” (me pergunto que ética é possível partindo de alguém que deu apoio aos campos de concentração ou câmaras de gás). Neste panorama, destaca-se o fracasso de se criar uma legítima sinologia Brasiléia, após o retumbante sucesso da olimpíada de 2008.

Que se diga, aqui, que o objetivo deste texto não é o de exaltar a China como a nova esperança, o novo modelo do século 21. Contudo, diante de tantas aspirações intelectuais problemáticas que o Brasil tem, não seria interessante conhecer novos modelos? Já insisto neste ponto há tempos, mas tão somente lamento que nossos “intelectuais” se recusem, simplesmente, a fazê-lo, seja por falta de interesse (o que é estranho em um intelectual), seja por suas limitações técnicas ou particulares (mas aí, será, então, que podemos chamá-los de intelectuais, posto que não fazem esforço algum para se superarem?); e tomo como ponto de partida, para ilustrar este texto, a análise superficial e irritante que foi feita da olimpíada chinesa, e as diversas aplicações que foram feitas do tradicional orientalismo (já denunciado por Edward Said) ao projeto de se conhecer “melhor” a China.

Comecemos pelo básico, os meios de comunicação de massa. Não tenho receio de dizer que os apresentadores escalados pela Rede Globo se tornaram nos especialistas de última hora sobre esta civilização. No último programa do “Fantástico”, antes da abertura das Olimpíadas, um deles, com pretensões de intelectual, deliciou-se ao contrapor a China, informada como uma civilização de “Cinco mil anos de tirania e despotismo” contra os Estados Unidos, “quinhentos anos de democracia e liberdade”. Isso só já basta para mostrar a intenção de desinformar o público ou, ao menos, formar sua opinião de modo completamente acrítico.

Esta ladainha continuou no momento da cerimônia de abertura, que foi um grande show. A perfeição dos movimentos, a coordenação das equipes, tudo isso foi considerado como resultado de um “intenso e rígido trabalho organizado pelo partido comunista”. Os comentaristas eram outros, mais isso não importa: a questão é o discurso estabelecido. O partido comunista é acusado de organizar de modo feroz, absolutista e cruel a cerimônia de abertura; poderíamos supor que se tudo estivesse uma bagunça, então, seria um sinal de democracia? Não me lembro de aberturas de olimpíadas em qualquer outro lugar do mundo que fossem acusadas de totalitarismo por serem bem organizadas, apenas a da China. Do mesmo modo, o principal comentarista esportivo da Globo, dias depois, aludia que o alto desempenho dos atletas chineses se dava em função de um treino extenuante, implacável, feito dentro dos moldes tradicionais do comunismo perverso, que recompensava o sucesso e punia rigidamente o fracasso. Pergunto novamente: há algum atleta de grande desempenho que não treine muito? Existem atletas que se preparam para uma olimpíada tomando uma cervejinha na noite anterior à maratona?

No final das contas, os chineses provaram sua capacidade de promover um evento internacional de alto nível, sem grandes problemas. No entanto, se a moda da China chegou a virar uma novela global, ela teve pouca repercussão, e com os mesmos estereótipos de sempre (chineses que lutam kung-fu, máfia chinesa, etc.). Isso se deve, provavelmente, a repetição incessante das mesmas besteiras de sempre – que os chineses comem escorpiões, que matam crianças, que são uma ditadura, que são estranhos e incompreensíveis, etc. Mesmo a população já está cansada de ouvir sempre o mesmo lenga-lenga, e por esta razão, a China não lhes desperta nenhuma atenção maior ou mais profunda.

A decepção, porém, ficou por conta dos “intelectuais”. Com raríssimas exceções, rastreadas a muito custo no meio acadêmico, nota-se que a universidade brasileira ficou praticamente muda diante da questão chinesa. Arrivistas, escondidos por debaixo de suas antigas teorias escritas em línguas européias, os “intelectuais” calaram-se diante da China, tal como fizeram nas primeiras crises do governo Lula. Não houve o surgimento de um interesse acadêmico legítimo, e o Brasil se comportou como um misantropo, isolando-se na sua bolha inzoneira. Não aconteceram denúncias bem fundamentadas sobre o regime chinês; não houve também apoio ao mesmo; muito menos, compreensão histórica e intelectual desta civilização; simplesmente, nada aconteceu no chamado “meio pensante”. Como um matuto que tem medo de coisas novas, os “pensadores” do país praticaram sua misantropia calculada, invocando sempre a velha cantilena de que “ainda precisamos saber mais sobre nós mesmos”, e adiando para o futuro uma mudança de atitude (mas não é o Brasil o “País do futuro”?).

Quem tomou a dianteira neste contato com a China foi, novamente, a classe empresarial. Embora desprovida de um conhecimento cultural que pudesse auxiliá-la no estabelecimento de negócios proveitosos, ela decidiu investir no óbvio, e fez as malas para a China. O que era de se prever, aconteceu; sem um aparato acadêmico, burocrático ou lingüístico que pudesse ajudá-los em sua empreitada, muito dinheiro foi perdido, maus investimentos foram feitos e saímos perdendo mais uma vez. Nossos cursos de relações internacionais ainda formam diplomatas que só querem ir morar em Paris ou em Roma, mas que pouco entendem de servir aos interesses do próprio país; nas ciências sociais, filosofia e história, eles inexistem. Com o tempo, foi esta mesma classe empresária que começou a aprender, a duras penas, como lidar com o mundo chinês. Será curioso que, daqui a algum tempo, algum “intelectual” ainda se levantará para reclamar que no Brasil só se pensa em negócios, mas não em conhecimento; e, no entanto, qual pensador brasileiro está debruçado sobre estas fronteiras?

Mesmo quando eu cursava meus estudos universitários, tive que ouvir de um professor que a China “não era relevante, viável e nem pertinente para a academia; que era uma moda, que ia passar, e que eu deveria centrar minhas atenções em outras coisas da nossa própria tradição”. E qual seria esta tradição? Este etnocentrismo cego e limitado, que julga absolutamente viável estudar qualquer coisa que venha do “Norte do mundo”? Que se diga, aliás; passei anos na UFRJ ouvindo dizer que os Estados Unidos era o grande satã, o inimigo, mas nunca vi ninguém oferecer um curso sobre a história deste país para entendê-lo melhor. Aliás, ele sempre foi difamado por gente que usava calça jeans, comia hambúrguer com coca-cola, afirmava que eles são uma ditadura disfarçada de democracia, mas adoravam a violência punitiva dos fuzilamentos chineses, endeusavam a “força” do regime soviético, e muitos chegavam a brincar de germanófilos nazistinhas heideggerianos, sem ao menos perceber que, como supostos “agentes críticos”, eles seriam vítimas perfeitas para estes mesmo regimes – ou pior, eles podem simplesmente ser iguais a tudo aquilo que criticam... mas em sua frustração de não possuir o poder, advogavam essas teorias estranhas.

Uma análise mais profunda sobre a China necessita, portanto, da formação de um grupo de estudiosos sérios, que queiram realmente entender a sinologia em seu amplo espectro de assuntos, temas e problemas. Qualquer uma das chamadas “nações poderosas” possui grupos estratégicos para se relacionar com as civilizações emergentes, dispensando o uso de intermediários (caso do Brasil, infelizmente), o que inclui atitudes simples como a formação de um curso de língua e de cultura chinesa. Embora os brasileiros especialistas em China possam fazer o seu congresso dentro de uma Kombi, esta realidade pode ser alterada substancialmente, mediante um empreendimento sério e bem planejado. Um grupo sinológico atuante pode fornecer uma base razoável tanto para a formação de quadros acadêmicos, quanto no auxílio para as iniciativas comerciais (privadas ou estatais) que necessitam em muito de suporte. Por fim, o estudo da China renova e desafia as expectativas dos discursos teóricos nas Ciências Humanas, propondo alternativas instigantes. Como desprezar isso? Eis o que se impõe ante o fracasso desta sinologia brasileira, após 2008; mas este é o mundo da mutação, e por isso, pode mudar também. Que esta mensagem na garrafa caia no mundo virtual, e siga o seu curso.

Quando os países se encontram em tempos de paz, todos trabalham sem que se diferenciem um dos outros em sua posição social. Ainda que exista uma escala de salários, a diferença dos profissionais é muito grande. Assim, a inteligência permanece adormecida por falta de competência. Sem os instrumentos, as instituições legais, as idéias e os pensamentos não se renovam, nem se transformam constantemente, a sociedade fica estancada, corrompida e até mesmo degenerada, o que acarreta danos irreversíveis. (Kang Youwei, 1858-1927)

Dezembro, 2008

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