Divagação sobre o Acaso

Um velho vivia com seu filho em um forte abandonado, ao alto de um monte, e um dia perdeu um cavalo. Os vizinhos vieram-lhe expressar seu pesar por esse infortúnio, e o velho perguntou:

– Como sabeis que é má sorte?

Poucos dias mais tarde voltou seu cavalo com um bando de cavalos selvagens, e vieram os vizinhos felicitá-lo por sua boa sorte, e o velho respondeu:

– Como sabeis que é boa sorte?

Com tantas montarias a seu alcance, começou o filho a cavalgá-las, e um dia quebrou uma perna. Vieram os vizinhos apresentar-lhes condolências, e o velho respondeu:

– Como sabeis que é má sorte?

No ano seguinte houve uma guerra, quase todos os jovens foram convocados e morreram na luta, mas como o velho e seu filho eram agora inválidos, ambos não tiveram de ir para a frente.

(Texto do Huainanzi, adaptado do livro de Lin Yutang, "A importäncia de compreender")


Ao lermos esta história do Huainanzi, podemos nos perguntar: existe o acaso? Existe sorte ou azar?

Deve existir algo próximo ao que chamamos de acaso: todas as coisas são criadas, por exemplo, de modo único. não existe um peixe igual a outro, ou mesmo um ser humano igual a outro. Nenhuma estação é idêntica a outra, bem como cada dia é diferente do outro. Este é o mundo de Qi (matéria), que é regido pela mutação (Yi).

No entanto, o que torna os peixes pertencentes a uma mesma espécie, o que faz os humanos nascerem com propriedades e características semelhantes, e o que faz com que os dias e estações sempre se repitam, dentro de certos ajustes, demonstra que existe um padrão por trás destas coisas. Este padrão é o princípio (Li), que rege a estruturação das coisas.

Sendo assim, tal como yin e yang, Li e Yi se combinam para dar forma e sentido a matéria. Do mesmo modo, se existe um acaso, então terá o acaso um certo padrão? Será o padrão do acaso ser, justamente, sua propriedade de "acasualidade"? E se o for, no que ela consiste? Se o acaso for como a mutação, então, ke neng (acaso) é igual ou, no mínimo, regido por yi (mutação), e assim sendo, há uma regra definidia para o que é o acaso, embora sua manifestação esteja sujeita ao acidente, como deve ser.

Por conseguinte, "acaso" não é senão outro nome de uma propriedade da mutação, mas que mesmo assim tem um padrão (Li). O acaso só pode, então, manifestar-se de modo imprevisível; logo, quanto melhor um plano for elaborado, e suas consequências forem as mais previsíveis, atendo-se ao princípio das coisas, e não a mutação, maiores são as chances do acaso ser afastado ou evitado.

Por esta razão, o sábio faz planos, e não deixa a vida levá-lo de modo acidental. A correnteza arrasta as coisas mortas; o sábio é flexível, mas sem perder sua consistência, e assim ele resiste ao acidente e imagina o que poder ser o futuro, de modo a realizar seus sonhos e aspirações. Ele não é arrastado pela correnteza; ele desenvolve o ritmo, aprende a nadar, e se dirige para onde quer ou para onde consegue ir.

Quem imagina, pois, que a sorte ou azar estão além de nossa compreensão estão enganados. Liu An tentou transformar um acaso em algo além de nossa compreensão; de fato, porque a natureza funciona desta maneira, ninguém o sabe. Contudo, compreendemos alguns dos modos pelos quais ela opera, e isso tem estendido a vida dos seres humanos. Se nos deixássemos levar pela idéia do acaso como uma força preponderante na natureza, que sentido haveria, então, de fazer planos e tentar viver mais?

Disso decorre que o desejo de viver afasta o acaso dos planos; que continuamos a nos superar para não ceder ao imprevisível, e nem devemos acreditar que somos vítimas de um possível destino já traçado; ou pior, de uma vida absolutamente sem sentido, regida por disposições completamente acidentais.

Wang Chuanshan disse: "Li existe dentro do Qi, e não há Qi sem Li. Qi existe no espaço, e o espaço existe por Li. Assim, ambas se engendram mutuamente", o que signfica: apenas os tolos se deixam levar pelas circunstâncias, acreditando que este é o sentido de sua existência.

Aliás, não creio ter feito este texto por acaso.

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