Quando chegou numa certa idade, deu-lhe na telha de buscar a libertação das coisas materiais. Isso incluía a esposa e alguns filhos, mas ele precisava atingir a transcendência espiritual.
Apresentou seus projetos de tornar-se um eremita, um recluso, e de se afastar do "imundo mundo mundano", como gostava de dizer. A mulher e os filhos ficaram tristes, mas tiveram que aceitar. E assim, ele começou sua carreira de asceta.
Meditou muito tempo, e de modo sincero. Praticou o quanto seu corpo permitia, e conquistou vários poderes, alguns desconhecidos pela maior parte das pessoas. Chegou o dia, então, de morrer. Saiu do corpo, e foi ter direto com o juiz do inferno, que julga os antecedentes dos mortos e decide para onde eles vão. Ao chegar lá, supreendeu-se de encontrar sua ex-esposa sendo também julgada. A burocracia do inferno é como a do mundo dos vivos, uma verdadeira calamidade bagunçada, embora funcione melhor, apesar de todos os funcionários públicos serem deuses caídos ou demônios (ou talvez, por isso mesmo...). Aproximou-se a tempo de saber que ela estava sendo despachada para a corte celeste, onde seria recebida como uma serva humilde, porém abençoada. Esperou, por consequência, que seu destino fosse ser melhor.
No entanto, o juiz do inferno chamou-o, leu seu caso, e deu a senteça:
- É, você vai ter que ficar por aqui um tempo antes de voltar para o mundo dos vivos.
Mas como???, - retorquiu o anacoreta - eu pratiquei exaustivamente a meditação para encontrar a paz de espírito, para desenvolver a força da minha alma....porque estou recebendo esta pena, enquanto minha esposa, que sempre foi uma pessoa comum, está indo para a corte celeste?
O Juiz do inferno, que nunca se acostumou a ouvir reclamações, apesar de ocupar este posto fazia um bom tempo, respondeu daquele jeito peculiar e grosseiro de quem não gosta de ser contrariado, mesmo que empregando uma elegância contida:
- É, você fez bonito por si mesmo, mas o que fez pelos outros? Sua esposa sustentou você e os filhos durante todo este tempo; se ela teve alguma paz de espírito, foi em meio ao caos; se ele adquiriu algum poder, foi o de alcançar a fibra moral com a humanidade ao seu redor. Seu trabalho rendeu frutos, que foi o de criar os filhos de modo correto, preparando-os para a vida e contribuindo para a harmonia entre o Céu, a Terra e o mundo das pessoas. Já você... deixou todos na mão para se salvar sozinho. Alcançou poderes especiais, que só tiveram serventia para si mesmo. Trancado na sua gruta, você não fez mal algum ao mundo, mas também não fez nenhum bem. Sua vida, de fato, foi bastante "mais ou menos"... Então, sua pena será ficar um tempinho aqui, aprendendo algumas lições fundamentais, antes de voltar para o mundo dos vivos e tentar de novo. Afinal, para subirmos de posto temos que estar capacitados; e pro seu azar, os deuses resolveram ser confucionistas meritocráticos.
E em meio as primeiras garfadas que já levava dos demônios, deram-lhe uma vassoura.
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