Tian, um conceito ecológico (2)


No texto anterior, Tian: um conceito ecológico, propus a idéia de que o conceito de Céu, para Confúcio, implicava a concepção de uma ordem ecológica, movida por leis naturais, com as quais o ser humano se relaciona de forma racional, mas relativamente autônoma. Agora, algum tempo depois, encontrei estes dois textos que, a meu ver, corroboram esta teoria. Eles foram escritos por Liu Zhongyuan e Hanyu, ambos neoconfucionistas e amigos, durante o período Tang. Note-se a incrível atualidade da discussão presente nos fragmentos, permeadas, porém, pela visão das concepções confucionistas.

Hanyu me disse:
Sabe o que é o céu? Vou te explicar;
Quando as pessoas estão desgraçadas e sofrem, abatidas pela fadiga e pela vergonha, torturados pela fome e pelo frio, elas lançam seus olhos para o céu e o invocam. Elas dizem: os que oprimem os outros prosperam, os que ajudam perecem. Porque permitis que se produza tamanha injustiça? Se eles fazem isso, é porque nenhum deles compreende o céu.

Quando apodrecem as frutas e as vagens, quando se corrompe a comida e a bebida, aparecem os insetos. Quando o sangue e as energias das pessoas estão perturbados ou deteriorados, obstruídos ou alterados, se formam furúnculos, ulceras, tumores ou bócios, e ai aparecem também vermes. Quando a madeira apodrece, os cupins a comem; quando a erva se decompõe, aparecem as minhocas. Não há duvida que todos estes vermes devem sua vida a decomposição; a matéria corrompida ajuda a produzir os insetos.

Do mesmo modo, quando o grande fluido primordial do mundo se corrompe, nascem as pessoas.

Uma vez que aparecem os bichos, a matéria se altera cada vez mais, já que eles a devoram, corrompem, roem, atacam, estragam-na. O dano que podem causar a matéria é imenso. Se alguém pudesse exterminá-los, a matéria estaria em dívida com ele; em compensação, a matéria odiaria quem faz os bichos proliferarem.

O dano que a humanidade causa ao grande fluido primordial, a natureza, é igualmente grande. O homem corta as árvores ainda jovens, ara a terra, destrói montanhas e arrasa bosques. Cava o solo para abrir poços, cava tumbas para seus mortos, faz buracos para serem latrinas, erige paredes e muralhas, vilas e cidades, terraços e pavilhões, torres e casas. Desvia os rios, constrói diques, canais e fossos, escava tanques e lagos. Converte madeira em tochas e as queima, transforma o metal fundindo-o, molda e coze o barro, esculpe e lixa a madeira, desbasta e poli a matéria, torturando-a. por sua culpa, o céu, a terra e a natureza não podem conservar sua integridade. O homem a ataca, agride, destrói, transtorna e altera a natureza sem cansar-se jamais. Acaso o dano que o homem faz ao grande fluido primordial não é superior ao que fazem os bichos?

Penso, pois, que aquilo que consiga prejudicar o gênero humano, destruindo-o, fazendo-o diminuir a cada dia, fazendo decair a cada ano, reduzindo ao máximo o dano que ele causa a natureza, teria com certeza o respeito meritório do céu e da terra; em compensação, quem fizer prosperar e multiplicar o ser humano, será considerado odioso pela natureza.

As pessoas, no entanto, ignoram todas as leis da natureza; por isso invocam o céu e se lamentam. Estou convencido de que o céu ouve seus clamores e seus prantos, mas recompensa generosamente quem tem mérito para isso e castiga de modo exemplar os que fazem danos. Qual seu parecer a esse respeito?

Eu lhe respondi:
O que você diz é inteligente e bonito, e tem valor. Seu discurso me agrada e vou terminá-lo.

O que vemos de obscuro lá em cima é o que chamamos de céu. O que vemos de marrom abaixo de nós é o que chamamos de terra. A confusa substância que há entre os dois é o que chamamos de grande fluido primordial; o frio e o calor que se sucedem é que chamamos de yin e yang, a harmonia da natureza. Tudo isso é imenso, mas não difere das frutas e das vagens, dos abscessos e das ulceras, das plantas e das arvores.

Suponhamos que alguém afugentasse destas coisas os bichos que as atacam e devoram; seriam capazes das coisas conceber alguma gratidão? Do mesmo modo, podem sentir ódio do que favorece os bichos?

O céu e a terra são enormes frutas ou vagens; o grande fluido primordial, um enorme abscesso; a natureza, enormes plantas e árvores. Como poderiam recompensar o mérito e castigar as faltas?

Quem leva a cabo um ato de mérito, o faz para si mesmo; quem comete um falta, também a comete para si mesmo. Querer que sejam recompensados ou castigados um ou outro é uma loucura. Rezar, lamentar-se ou espernear obstinadamente para que o céu se apiede e se mostre misericordioso é uma loucura ainda maior.
Cada homem deve guardar em seu coração a virtude e a justiça para viver sua existência em meio ao todo; nascer, morrer, viver e isso é tudo. Porque acreditar que a conservação e a ruína das pessoas, sua prosperidade ou desastre dependem das frutas e vagens, dos abscessos e das úlceras, das plantas e das árvores?

(Liu Zongyuan, 773-819)

Tudo o que tem forma acima é o que se chama céu; tudo que tem forma abaixo é o que se chama terra. O que vive em ambos os elementos é o que se chama homem.

Acima, o sol, a lua e as estrelas e planetas formar parte do céu; abaixo, as plantas, as árvores, as montanhas e os rios formam parte da terra. Entre ambas as instâncias, os bárbaros, as bestas e as aves formam parte do homem.

Isso significa que se pode dizer que uma besta ou ave é um homem? Certamente que não. Se alguém aponta para uma montanha e pergunta "isso e uma montanha?", seria justo responder que sim. Todas as plantas, árvores, bestas e aves que se encontrassem na montanha ficariam assim abarcados. Mas se apontarmos para uma planta é perguntarmos "é uma montanha?", seria falso responder que sim.

Por isso, se a via celeste se vê alterada, as estrelas, os planetas, o sol e a lua perdem seu curso. Se a via terrestre se vê alterada, as plantas, árvores, as montanhas e os rios perdem sua paz. Se a via humana se vê alterada, os bárbaros, as bestas e as aves perdem sua vida normal.

O céu é o senhor do sol, da lua, das estrelas e dos planetas. A terra é senhora das plantas, das arvores, das montanhas e dos rios. O homem é senhor dos bárbaros, das bestas e das aves. Se o senhor é cruel, perde a virtude que constituía seu senhorio. Em compensação, um só olhar do sábio difunde a virtude para a humanidade, instrui os que estão perto e estimula os que estão longe.

(Hanyu, 768- 824)

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