Existem momentos em que nos cansamos de buscar a sabedoria, ou mesmo de tentar ensinar o caminho a quem quer que seja. Isso ocorre porque nos vemos repletos de dúvidas; afinal, se o que sabemos é tão bom, porque as pessoas não dão ouvidos a sabedoria que buscamos difundir? Em alguns casos, tais crises são um resquício de vaidade, um relance do desejo de fazer parte da transformação do mundo, aliadas a impaciência de ver estas mudanças acontecerem no tempo de uma vida. Isso, contudo, passa. O exercício do conhecimento dos letrados leva ao desapego das coisas comuns, e a única coisa ao qual ele se apega é a humanidade, de forma altruísta, e não haverá dia em sua vida que ele não deixe de se preocupar com o bem estar dos outros.
Se isso soa piegas, não é porém insincero. Um letrado, buscando a sabedoria, dedica-se ao estudo, aos livros e a educação, pois sabe que, historicamente, este é único modo de mudar o mundo. No entanto, isso demora; e como o tempo escoa, e os sábios disponíveis são poucos, então... Como saber que se está no caminho da sabedoria?
De fato, o caminho letrado não é fixo ou imutável; atento às transformações do mundo, ele sempre tenta nos lembrar que existem princípios pelos quais as coisas surgem, mas a evolução das culturas e das sociedades os manifestam de modo diferente, e a historia da humanidade é um caminho de eterno ajuste, da busca de um equilíbrio constante.
Neste caso, como sabermos que estamos seguindo o caminho de modo apropriado, compreendendo que não podemos nos apegar totalmente ao passado, mas que não podemos, também, abraçar inteiramente o futuro sem abandonarmos os princípios? Este é o momento crucial das dúvidas. Um sábio entende que as dúvidas são parte natural do processo de conhecer as coisas - afinal, não se pode afirmar qualquer coisa sobre aquilo que não se conhece - mas em que momento as dúvidas, em si, abalam as nossas supostas certezas sobre o que estamos fazendo?
Nestes momentos, o daoísmo e o budismo parecem mais atraentes do que nunca. Desligar-se de tudo, enfiar-se em florestas, chácaras ou templos, esquecer do humanismo socializante e dedicar-se a si mesmo de modo auto-centrado (ou será egoísta?), desenvolver poderes desconhecidos, etc. tudo isso parece tão atraente... não é sem uma certa inveja que imaginamos os sete sábios do bosque de bambu bebendo o dia todo, fazendo poemas, filosofando - embora não se tenha decifrado, até agora, o mistério de como eles se sustentavam.
Mas fugir do mundo não será simplesmente negar a dúvida, e não respondê-la? O hedonismo do jovem, em busca do prazer sexual, é substituído pelo do velho, em busca do sono alienante. Alheiar-se pode ser, então, uma excelente forma de não ter mais dúvidas... como também, é uma maneira de não se ter respostas. Viver assim, pois, é sujeitar-se a uma vida de acidentes, e não acredito que isso seja sábio. Parece ser algo bom, mas só isso torna tal atitude uma via válida? Esta é mais uma dúvida, e mais um pedido de resposta...
Nos momentos em que nossas convicções estão abaladas, deve haver alguma razão, pois, para as dúvidas surgirem. Mesmo Confúcio duvidou, em seu fim, que tivesse cumprido sua missão - ainda que estivesse absolutamente resoluto sobre suas conquistas e certezas então, o que são as dúvidas?
Se pudermos acreditar na experiência da própria escola dos letrados - com uma longa historia de duvidar das coisas, e de construir conhecimento a partir da ponderação -, poderemos afirmar que, para estes estudiosos, a dúvida é o momento central da construção do saber. A dúvida surge quando nos incomodamos com o que não sabemos responder - seja para os outros, seja para nós mesmos - e tão somente esta atitude já demonstra que estamos no caminho para chegar a um outro lugar adiante.
Precisamos da dúvida para crescermos internamente. Desprover-se delas é estagnar a mente, e abandonar-se a si mesmo numa perspectiva dependente do mundo e dos outros. Disse Zhang Zai (1020-1077):
Não duvidar do que é duvidoso equivale a não ter estudado. Estudar nos leva a duvidar. É o mesmo que se dá com as viagens; quem quer ir até as montanhas do sul tem que perguntar o caminho. Se alguém se contenta em ficar sentado tranquilamente, sem fazer nada, como podem aparecer as dúvidas?
Aqui surge a imbricação fundamental entre a dúvida e o estudo, ponto crucial na doutrina dos letrados; só podem existir dúvidas por parte daqueles que buscam conhecer, e isso é inerente a qualquer um que busque uma via. Quem nada procura, nada pode achar também. No entanto, ao nos depararmos com as dúvidas, corremos o risco de entendê-las como uma desconstrução de nossas idéias, para além de uma simples etapa na evolução do mesmo. Zhuxi (1130-1200) reproduziu sensivelmente este momento quando escreveu:
No estudo acadêmico, é preciso fazer esforços e levá-los a tal extremo que chegamos a nos ver cercados de trevas por todos os lados, sem encontrar um lugar por onde entrar, e é somente neste momento que podemos dizer que alguém realmente progrediu. São as dúvidas que dão origem aos progressos. Em compensação, aqueles que crêem haver progredido e dizem ter chegado ao seu destino, pode-se ter certeza, é bem duvidoso que hajam realmente chegado muito longe.
Ter dúvidas, portanto, é parte essencial do caminho do estudo. Sem elas, não há estudo real, nem descoberta:
Ao começar a ler, nós não temos dúvidas; mas tão logo a leitura avança, elas vão surgindo, e no meio do caminho, cada passagem nos oferece dúvidas novas; no entanto, depois disso, vamos elucidando cada uma delas, atingindo uma compreensão cabal e livre de dúvidas acerca do texto, e finalmente realizamos o verdadeiro estudo. (idem)
Somente um estudo aprofundado, portanto, leva as dúvidas; e somente as dúvidas nos conduzem a construção de um conhecimento próprio e autêntico:
Ao ler obras antigas, não convém somente fazer eco a elas e ficar repetindo-as, sem conhecer devidamente o que elas defendem. É preciso penetrar nelas e analisá-las profundamente, para que possamos sustentar uma opinião sobre elas. (idem)
O surgimento das dúvidas, mais do que um sintoma do verdadeiro estudo, demonstram uma insatisfação sadia com o que se sabe - pois aquele que se propõe a ser um letrado, mas entende-se satisfeito com o que conhece, corre um grande risco de estar agindo de modo arrogante ou pouco esclarecido. Alguém que muito estuda, mas pouco reflete, não pode se dizer que estudou, realmente. Huang Zongxi (1610-1695) foi preciso ao afirmar que:
No estudo acadêmico, o que é útil e eficaz é o que cada um encontra de útil. Quase todos os autores das obras que carecem de idéias originais não são mais do que simples reproduções de pensamentos consagrados; eles não são mais do que gente acostumada ao papel de papagaios, repetindo o que todos já sabem, tentando sempre estar na moda, e buscando obter seu sustento com isso.
Huang é bastante esclarecedor sobre os que estudam, mas não tem dúvidas: eles são incompetentes, são ignorantes, e não trilham o caminho para alcançar a sabedoria. Como são incapazes de angariar fama e dinheiro por seus próprios (não) méritos, escolhem a educação como forma de sustentarem suas limitações, e nelas se destacam como aqueles que sempre tem razão, agindo de maneira dogmática e intransigente e atraindo para si alunos que se conduzem de modo semelhante.
Assim sendo, ao nos sentirmos desconsolados com nossas dúvidas, devemos ser levados a uma reflexão profunda de nossas ações e propósitos. Sem dúvidas, não podemos progredir; sem progressão, de nada adianta nosso estudo.
Há, contudo, um último aspecto nesta explanação: ao acreditarmos neste caminho antes proposto, e mesmo que a dúvida faz parte dele, então, devemos ter fé neste caminho ou mesmo, devemos duvidar dele? Se fosse necessária fé, ou qualquer outra forma de crença neste caminho que desprovesse seu praticante da razão, logo, não seria o caminho dos letrados. Assim sendo, este caminho está aberto a duvida; e sabe-se que só se pode estar nele se duvidarmos. Deste modo, se alguém duvida do caminho dos letrados... já começou a estar nele!
Como não duvidar disso tudo? E como não ter certeza disso?
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