Quando não se vê a si mesmo

Era um funcionário dedicado, mas não bem sucedido. Seus esforços calculados, visando o maior bem – ou talvez, o menor incômodo – não atingiam os objetivos. Vivia em meio a um reino em que a cultura da inação era a tradição do trabalho. Embora quase se pudesse acreditar que este povo pretendia a salvação pela não-ação, não eram, contudo, nem caminhantes nem budistas; eram apenas adeptos da inércia.

Mesmo os demônios pareciam ter desistido de lá; afinal, não era preciso fazer nada para aquela terra ficar ruim. E qualquer ação nesse sentido talvez não fosse bem sucedida também. Afinal, nem atrás de pecados essa gente corria; elas os inventavam.

Somente a crítica maldosa tinha adeptos. O exercício da retórica e do debate era levemente exercitado, com fins de coibir ações industriosas. E nesse caso, nosso magistrado pintou em si um alvo de injúrias.

A questão é que suas empresas incomodavam; mesmo que tudo ficasse melhor com suas propostas, fosse por inveja, ganância ou pela mais pura indisposição, seus detratores o impediam em quase tudo. Era quase de se crer que trabalhavam mais para não labutar do que outra coisa.

Um dia, então, desolado, este homem sentou-se exausto e se abandonou. Viu-se vencido, paralisado pelo marasmo que consumia a todos. Nessa hora apareceu o Andarilho Celeste, passeando pelo mundo, que se compadeceu do pobre homem e se dispôs a papear com ele. Após ouvir seus tormentos, o andarilho, com olhos de quem já viu tudo que deveria, falou com o magistrado:

- meu caro amigo, suas virtudes denunciam os erros alheios; suas ações, a incompetência dos outros. Não pense que você não faz nenhum bem. Entendo o que você sente; há névoas dentro de si, e você não olha com claridade o que há ao seu redor.

- e o que há, então?, perguntou o magistrado.

- há um mundo. Há outros lugares. E há o simples passo de fazer o certo. Obviamente que às vezes é difícil enxergar o que funciona. Mas se o mundo parasse de vez, não existiríamos. Suas obras ajudam a continuar o movimento e a mutação. E quando você realmente cansar de promover o bem aqui, ou ver que esta seara se esgotou, você estará pronto para ir. Se não sentirem uma saudade inquietante de você, você receberá uma dispensa completa e sem ressentimentos para ir embora. Irá onde quiser, mas grande como você se construiu a si mesmo. Não se olhe no espelho para se descobrir menor do que é. Apenas quem é pequeno, de fato, se empavona com sua própria imagem para se tornar algo que não é. Quando finalmente terminar sua missão, pode ir; mas se sofre, e se fica, é porque ainda não acabou; e se há resistências, é porque enfrentou a luta certa. Quem no caminho certo o veria como um caminho errado?

O homem se iluminou com as palavras do andarilho. No dia seguinte, movido pela obstinação em ajudar a humanidade, adicionada a uma boa dose de birra, ele fez mais não sei quantos projetos novos. Sentia-se longe de conformar-se com a mediocridade, como se parte de si mesmo fosse movida mais pelos problemas que há para se resolver do que pelas respostas existentes.

E então, rezou; e foi fazer o que tinha que fazer.


Repita-se dez mil vezes um ideograma e ele começará a fazer sentido por si mesmo.

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