Em Ensinar brincando x brincando de ensinar, busquei apresentar a visão chinesa sobre a metodologia do ensino que leva em conta as propensões humanas; já em Uma breve apreciação sobre a história do estudo na China, meu foco foi uma apresentação do que seria o ato de estudar entre os autores clássicos chineses.
O que apresento nesse texto de agora é uma discussão sobre um aspecto fundamental da relação entre a vontade e o estudo na visão chinesa. Nas crenças (quase religiosas) de muitos educadores de hoje, o empreendimento do ensino se dá por um aprendizado espontâneo baseado nos princípios LAP (lúdico, afetivo e prazeroso), em que as estratégias didáticas visam praticamente dispensar o aluno de qualquer contraparte no processo de apreensão e do estudo. Brinca-se, ilude-se, canta-se, etc... Enfim, o estudante é estimulado a tudo, exceto a concentrar-se no estudo – o que, no momento em que ocorre, causa um grande mal estar, o ‘momento ruim’ da aula; o outro lado dessa situação é o profissional conteúdista, mercenário, que joga os conteúdos ao léu, exige tão somente a atenção zumbi dos alunos, e mira incessantemente seu relógio, aguardando o fim da aula e o término do mês, quando recebe seu salário.
Os chineses são conhecidos por serem extremamente exigentes com as crianças em questões de estudo e disciplina. Isso não implica, como pode parecer, numa anulação do indivíduo, embora os chineses estejam sendo acusados, constantemente (principalmente pelos educadores ocidentais, claro) de empregarem métodos tradicionalistas, competitivos e repressivos para alcançarem tais fins. A questão é que a educação chinesa é tradicional sim, pois ensina os valores de uma cultura milenar que subsiste, inclusive, por conta desses mesmos valores; é competitiva, na medida em que prepara o aluno para duas realidades indiscutíveis – a necessidade do preparo íntimo para a afirmação da autonomia, e a existência da competitividade no mundo do trabalho e das ciências – e por fim, ela poderá ser sim entendida como repressora se a ‘repressão’ implica em inculcar nas crianças e adolescentes valores humanos, como o respeito a família, aos mais velhos, aos bons modos no ambiente público, a inibição da violência...
O resultado disso pode ser visto a olhos claros: uma cultura milenar que se preserva, aliada a uma economia que cresce absurdamente num curto espaço de tempo, e numa sociedade em que o índice de assassinatos é menor dos que nos EUA ou aqui – ainda que numa população de 1 bilhão e 300 milhões de pessoas. Que se entenda, e volto a insistir; a China não é o paraíso na Terra, e tem seus problemas. Contudo, sua sobrevivência e consistência cultural derivam de uma consciência única sobre o papel do estudo na continuidade da civilização. Desde Confúcio, os chineses já percebiam que a manutenção de seu modo de vida dependia, exclusivamente, do hábito de estudar, perpetuando a essência e modificando o necessário.
A experiência chinesa se apresenta, pois, como um conjunto de resultados e expedientes obtidos em situações pragmáticas, testadas, afirmadas e/ou negadas ao longo de séculos. O cabedal teórico decorrente dessas provas formou-se ao longo de séculos graças à visão de intelectuais que escrutinaram diligentemente os problemas educativos da sociedade, tentando resolvê-los. Um dos resultados dessa experiência é o que propomos aqui, o exercício da vontade no estudo.
Já na antiguidade
Confúcio já dizia no Grande Estudo (Daxue):
Estas palavras: ‘corrigir-se a si mesmo de todas as paixões viciosas consiste em dar retidão à sua alma’, querem dizer que, se a alma está perturbada pela cólera, se se vê dominada pelo medo, se se encontra agitada por uma paixão da alegria ou do prazer, se se sente acabrunhada pela dor, não pode conseguir esta retidão. Não sendo o ser senhor de si mesmo, olha, mas não vê; escuta, mas não ouve; come, mas não sente o sabor dos alimentos. Isto explica porque a ação de corrigir-se á si mesmo de todas as paixões viciosas, constitui obrigação de dar retidão à sua alma.
O que significava esse pequeno trecho? Que não há processo de auto-afirmação sem mudança interior. Do mesmo modo, a educação de nada servirá se ela for apenas um meio de formatação externa, de amoldamento superficial a sociedade. Confúcio já apontava que a o processo de modificação íntima depende da vontade de que a busca – e a vontade, essa, pode ser desperta ou estimulada, mas não forçada; do mesmo modo, pode ser aprimorada, mas nunca ensinada. Do que se conclui que aquele busca algo para si depende de sua vontade; e se o estudo é o caminho para manter ou modificar o mundo, depende do agente – o estudante – desenvolver-se a si mesmo na vontade e no interesse de estudar. A relação vontade-interesse se engendra mutuamente, tal como tudo é yin-yang; no entanto, se uma falha, a outra não pode existir; se uma é mal dirigida, a outra também fenecerá. Esse cuidado fundamental já fora percebido desde as primeiras crises do mundo chinês, e se tornaria numa pedra basilar do discurso confucionista da vontade e da determinação pelo estudo.
A vontade como realização da propensão
Os autores posteriores entenderam que não pode haver vontade sem respeito as propensões. Zhang Zai, por exemplo, afirmara que:
Não importa se são excelentes ou pobres os dotes naturais do estudioso, nem tão pouco deve se exigir a todos que façam duros esforços para aprender. A única coisa que deve se observar é a propensão que domina o mais íntimo do coração. [Zhang Zai, 1020 + 1077]
No entanto, o respeito à propensão deve ser a mola propulsora da vontade, e não a oportunidade da indolência. O estudante minimamente preocupado em evoluir deve construir para si a consciência de que o caminho do estudo pelo que se optou envolve um esforço dedicado pelo aprimoramento e desenvolvimento:
O que se passa com o estudo é o mesmo que a subida numa montanha. Quando um caminho é fácil, todos sobem ligeiro. Mas quando ele se torna escabroso, só os firmes e resolutos continuam. [idem]
Zhuxi, o intelectual que praticamente redisse Confúcio para a civilização chinesa, havia compreendido essa condição de tensão entre o interesse e a vontade propostas desde o Daxue. No entanto, o ponto de partida é a vontade. Despertar o interesse não se mantém pela simples curiosidade, mas pelo afinco do domínio de um conhecimento:
Aquele que estuda deve dotar-se de vontade. Atualmente, as pessoas andam sempre confusas e perplexas, por carecerem de uma atitude séria em relação ao estudo, e fazem tudo de qualquer maneira, com indolência, mostrando uma total falta de vontade. [Zhuxi, 1130 +1200]
Ocasionalmente, a fraqueza do espírito, a inexperiência ou a dificuldade podem parecer desalentadoras. Contudo, a experiência dos mestres evidencia justamente o contrário; que com persistência, se pode alcançar os mesmo conhecimentos deles – e ainda, se pode superá-los, tendo em vista que o conhecimento se acumula. Por conta disso, o exercício da vontade seria decisivo na construção do conhecimento e na superação individual:
Se me perguntarem o que vem primeiro no processo de estudar, afirmo, assim como os antigos, que se deve ter força de vontade. Se alguém sabe disso e se determina a ir adiante, é absurdo achar que ele não vai avançar. A única coisa temível é que a vontade não seja firme; que alguém se contente apenas em ouvir os outros falarem e a ler livros que outros escreveram; nesse caso, será difícil obter maiores resultados. [idem]
Por fim, a diferença de níveis de aprendizado – seja pelo tempo de estudo, pela familiaridade com um assunto ou mesmo pelas capacidades individuais podem ser dirimidas pela força da vontade e pelo interesse que dela se alimenta; o contrário, porém, não permite a nada evoluir:
Não importa que alguém saiba de memória um texto, pois conseguirá aprendê-lo recitando de vez em quando. Não importa se alguém não compreendeu o conteúdo de um texto, pois vai consegui-lo através da reflexão. A única coisa que não tem remédio é a falta de vontade. [idem]
Algum tempo depois, Yuji reforçava esse ponto de vista afirmando algo aparentemente óbvio, mas imprescindível para a realização da vontade do estudo: a concentração. Se no trecho anterior alguém pode supor que suas capacidades são inferiores por conta de uma diferença de nível entre ele e seus colegas, Yuji relembra que a atitude de dedicação em relação aos estudos é que traz o resultado eficaz, e não a mera comparação. É a postura íntima de desejo de aprendizado que leva ao desenvolvimento interior – mais do que ‘o que se sabe’, é ‘como se sabe’, uma conquista particular que só o estudante compreende e obtém em função de seus esforços próprios:
Quem quer, consegue. Com vontade firme, se alcança a concentração ideal, ante todas as distrações. Assim é que, sem vontade, não se consegue nada, por mais insignificante que seja. [Yuji, 1272 +1348]
Por isso, o desejo dos educadores de ‘estimular’ a vontade de aprender sem, contudo, visualizar a questão do esforço íntimo redundará em fracasso. Expedientes pedagógicos atraentes ou medidas autoritárias de avaliação são reconhecidas como erros desde esse remoto passado chinês. É necessário estimular a propensão, mas é igualmente indispensável cobrar os esforços do aluno, exigir-lhe dedicação, e incutir-lhe a consciência da necessidade do estudo para um fim maior:
Se alguém carece de vontade e só estuda porque é obrigado, sem uma atitude consciente, estará agindo de maneira infrutífera. [Wang Fuzhi, 1619 +1692]
O estudo como redenção
Pois todos esses discursos chineses buscam apontar para a necessidade incessante de manter-se num mundo que é, por sua natureza, mutável. O estudo é o pilar das tradições, o alicerce do conhecimento e a base da mudança. Sem estudo, as mudanças se transformam em acidentes, e as pessoas, em vítimas inconscientes. A tradição chinesa construiu-se em torno da percepção de que o caminho para a autonomia do indivíduo se sustenta, principalmente, em seu desejo de projetar-se no mundo como um agente transformador – nem que seja, ao menos, de sua própria vida; e para isso, ele depende fatalmente do estudo. O estudo sem vontade, portanto, nada ensina e nada faz por quem não o deseja; somente aquele que já compreendeu que a existência não permite atalhos se dedica com afinco, e dentro de suas possibilidades, ao caminho do estudo. Sua vontade corresponde à superação íntima; seu sucesso, ao seu talento; mas principalmente, sua humanidade e sabedoria dependem, única e exclusivamente, da persistência no estudo e no prazer que dele obteve, resultando inexoravelmente num conhecimento profundo, sutil e sensível sobre as coisas do mundo que levam, assim, a sabedoria:
Os sábios eram pessoas como nós, tinham a mesmas boca, nariz, ouvidos e olhos que as pessoas comuns; era sua vontade de estudar que os distinguia dos demais. Por isso, o sábio é uma pessoa comum com vontade e determinação para estudar, e as pessoas comuns são sábios sem vontade nenhuma de progredir. [Yan Yuan, 1635 +1704]
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